trabalhinho para a faculdade, de 2009. como escrevi há anos, com certeza ele não resistiria a uma segunda lida minha sem ser estraçalhado. é por isso mesmo que nem vou reler e vou só postar aqui. vai que é útil ou interessante pra alguém. eu lembro q gostei mto de escrevê-lo.
Introdução
Todas as produções artísticas são um reflexo de seu tempo e das experiências do artista. Da mesma forma que não há como desvincular a vida de uma pessoa de sua época, não há como ignorar o contexto em que uma obra foi produzida, ainda que esse não deva ser o único critério de análise. Partindo desse pressuposto é que surgiu a idéia de procurar destacar algumas das influências dos eventos do século XX através da análise de uma obra desse mesmo período. No caso, a escolhida é de 1979: o CD The Wall, da banda inglesa Pink Floyd. Considerado por muitos um dos mais importantes CDs da banda e também do rock, é dividido em duas partes, em que as músicas contam a história de um anti-herói chamado Pink, retratado também em um filme¹ com o mesmo nome. A personagem principal é claramente baseada na vida de Roger Waters, principal letrista da banda, mas também contém traços dos outros integrantes, o que se traduz em significados muito ricos e diversos nas letras. Entretanto, nesse trabalho procuraremos destacar principalmente o aspecto relacionado a eventos históricos.
O século XX
Não faremos uma descrição detalhada do século, e sim uma definição em linhas gerais. Olhando rapidamente as descrições existentes sobre esse passado ainda recente, percebemos que, se há um consenso, é o de que foi um período marcado principalmente pelas guerras, pelo horror que elas trouxeram, pelo surgimento do fascismo, do nazismo e do embate entre comunismo e capitalismo. Palavras como “genocídio”, “massacre”, “horror” e “totalitarismo” são também comuns nesses relatos. Esses eventos marcariam, para Hobsbawm, a “Era da catástrofe”. Mas, segundo ele, houve também a “Era de ouro”, caracterizada pelos grandes avanços tecnológicos, que forneceram, em especial para a classe-média americana, um nível de conforto e facilidade nas condições de vida jamais visto. Nessa visão, o século XX começa com a Primeira Guerra Mundial (1914) e termina com a queda da URSS, ou seja, o fim da Guerra Fria (1991). Para um aprofundamento nesse tema, recomenda-se o livro do próprio Hobsbawm, indicado na bibliografia.
The Wall e seus tijolos
The Wall conta a história de Pink, cujo pai morreu na 2ª Guerra Mundial. O título da obra refere-se à principal metáfora nela presente: cada evento sofrido na vida de Pink transforma-se em um tijolo que ele usa para construir um grande muro que o separaria do resto do mundo, como uma fuga. Já no fim da primeira música, In The Flesh?, ouve-se “Jogue neles!“², alusão à bomba que mata seu pai. Sua mãe, sob esse impacto da guerra, é desde o começo superprotetora com o filho. Conforme se depreende das letras, ela transfere nele não só a figura do marido perdido como também seus medos. Assim, o primeiro tijolo é a perda do pai, e podemos dizer que ele foi construído pela mãe de Pink, embora vejamos que ele sofre por essa ausência a sua vida toda, como quando vê crianças com os pais nos parques. Desde o começo vemos a distinção que a personagem faz entre ela mesma e o “resto do mundo”. Os outros, sejam pessoas ou instituições, sempre serão fonte de sofrimento, opressão e desilusão para Pink. Esse dualismo combina bem com sua própria época. Inevitável exemplo disso é a Guerra Fria, que dividia o mundo em dois. Aliás, é interessante notar que o principal símbolo da oposição entre comunismo e capitalismo era um muro, o de Berlim, assim como o muro de Pink representa sua oposição entre ele mesmo e o mundo.
Na segunda música, The Thin Ice, percebemos como Pink é introduzido à vida. Nos primeiros versos, temos: “E o mar pode parecer azul para você, bebê/E o céu pode parecer azul “.O céu e o mar parecem azuis, o que sugere que na realidade são o contrário disso. Ou seja, a paz e tranqüilidade que o bebê pode ter são ilusórias, e o mundo seria um lugar sombrio. A letra continua com: “Se você for patinar/sobre o fino gelo da vida moderna/arrastando a silenciosa censura/de um milhão de olhos cheio de lágrimas/não fique surpreso/quando uma rachadura no gelo/aparecer sob seus pés”. Note-se que se diz “quando uma rachadura” e não “se”. Assim, esse seria um fato (que faria com que Pink mergulhasse em si mesmo sob o peso de seus medos) já previsto e dado como inevitável. É como se aquele mundo, obscurecido pelas duas guerras mundiais (seriam as vítimas dessas o “milhão de olhos”?) e pelos conflitos dispersos na Guerra Fria, não oferecesse mais nenhum outro caminho senão aquele. Pink não viveu o período das Guerras Mundiais, mas é afetado por elas. Isso pode ser verificado no filme quando Pink acha o uniforme de guerra de seu pai e algumas balas. Ele o veste tal qual seu pai fazia, como se assumisse em si o parente perdido. Mais tarde, ele usa as balas para colocar em um trilho de trem, querendo ver o estouro que ela produziria ao ser esmagada pelo trem. Nesta cena, Pink, quando o trem passa, vê vários rostos mascarados saindo pelas janelas dos vagões, lembrando-nos judeus sendo levados para os campos de concentração. Ou seja, era uma consciência que ele sempre teria. Mas a “vida moderna” não se limita somente ao efeito do passado, conforme veremos com a quarta e quinta música, The Happiest Days of Our Lives e Another Brick On The Wall (Part 2).
Essas duas músicas tratam do tema da escola como instituição de repressão e conservadorismo. O “dia mais feliz da vida” da primeira refere-se ao primeiro dia de aula. Mas logo a letra diz que haveria “certos professores” que iriam, a todo custo, reprimir as crianças e o que fosse considerado fraqueza nas mesmas. No filme vemos Pink sendo humilhado pelo seu professor, que era, por sua vez, humilhado por sua esposa, sugerindo um ciclo que se repete, conforme diz Bret Urick em The Wall Analysis³. Ou seja, ninguém, na realidade, estaria imune a essa constante vigilância sobre nosso comportamento. Nesse aspecto, The Wall aproxima-se de obras como Admirável Mundo Novo (A. Huxley), ao sugerir uma sociedade em que há a busca pela padronização das pessoas. A segunda música é mais emblemática nesse sentido. No filme, enquanto ela toca, os alunos revoltam-se contra os professores, mas de uma forma um tanto contraditória. Todos eles aparecem uniformizados (e depois com máscaras), marchando como faziam os exércitos nazistas. O ambiente é o de uma fábrica (o que sugere estandardização dos estudantes pela escola) e os alunos marcham com o hino “Nós não precisamos de educação/ Nós não precisamos de controle de pensamento”, até caírem como bonecos em um processador que os transforma, literalmente, em carne moída. Podemos dizer que essa carne é depois usada para moldar as pessoas conforme a sociedade precisaria. A cena se reverte quando os alunos se revoltam e passam a destruir toda a escola, ateando fogo até nos próprios professores. A dita contradição decorre do fato de que mesmo nesse momento, os alunos parecem seguir apenas um padrão, protegidos pelo anonimato que a massa proporciona, o que traz apenas resultados destrutivos. Ou seja, nessa letra não se faz a defesa de uma abolição das figuras de autoridade, mas uma crítica ao uso feito delas em algumas escolas.
Afinal, foi através das escolas que se uniformizou ideologicamente os jovens dos governos totalitários. Mas mesmo sem propósitos nazi-fascistas, a escola continuaria, de qualquer forma, a servir como um instrumento de controle social em vários países. No ano em que The Wall foi lançado, havia inclusive uma onda crescente de conservadorismo, o que foi consolidado com a chegada de Margareth Thatcher como primeira ministra no poder. Conforme diz Hobsbawm: “Governos de direita ideológica, comprometidos com uma forma extrema de egoísmo comercial (…), chegaram ao poder em vários países por volta de 1980. Entre esses, Ronald Reagan e a confiante e temível sra. Thatcher (…) eram os mais destacados”4,. Assim, é seguro dizer que essa parte do álbum é uma crítica também a esses fatores presentes na vida e formação dos próprios integrantes da banda. Isso é confirmado pelo próprio Roger Waters em uma entrevista5: “Minha vida escolar era bem assim (…) [os professores] não estavam realmente tentando despertar o interesse deles [alunos] em nada, mas só tentando mantê-los quietos e parados, e forçá-los a ficarem na forma certa, de forma que eles pudessem ir à universidade e ‘ir bem'”. A supressão da individualidade foi um dos grandes temas do século XX e podemos dizer que continua a aparecer ainda hoje, como quando vemos milhares de pessoas seguindo um padrão ditado pela mídia.
A seguir, temos Mother e Goodbye, Blue Sky. A primeira começa com a pergunta: “Mãe, você acha que eles jogarão a bomba?”, o que nos remete ao medo de novos ataques nucleares, ou também ao temor de que a Guerra Fria se concretizasse em um confronto direto entre os EUA e a URSS. Pelo resto da letra, vemos Pink com medo de tudo, mesmo de aspectos de sua vida pessoal e a mãe respondendo que ele sempre seria o bebê dela e que ela o ajudaria a construir seu muro. Já na música seguinte, temos: “Você viu os que se assustaram?/você ouviu as bombas caindo?/Você já se perguntou por que tivemos que correr (…) quando a promessa de um admirável mundo novo desapareceu(…)?”. Podemos dizer que com a frase “Adeus, céu azul” há a despedida de Pink de sua infância. No fim da primeira parte, temos ainda novos “tijolos” na vida de Pink (agora adulto), sendo o principal deles um casamento fracassado. Pink torna-se cada vez mais alienado ao mundo, assistindo à televisão o dia todo, completamente entorpecido. Enquanto isso, descobrimos que ele virou um rock star (mas não é claro como isso acontece), e todos idolatram-no cegamente, o que lhe dá uma sensação de impunidade. A última música chama-se “Goodbye, Cruel World” e, nessa leitura, representa a finalização do muro em torno de Pink, ou seja, sua completa separação.
A segunda parte mostra Pink enlouquecido, com digressões que vão desde soldados voltando da Segunda Guerra (quando não encontra seu pai) a lembranças desconexas de sua infância e de sua ex-mulher que não atendia suas ligações. O estopim é quando ele tem um colapso e é tratado (como conta a música “Comfortably Numb”) para que voltasse à consciência e fizesse um show na mesma noite. A partir daí, no filme, sem qualquer explicação, vemos Pink transformado em um ditador, dizendo para a população na música In The Flesh: “Então vocês acharam que iriam gostar de vir ao show (…) Há algum gay aqui hoje à noite?/Coloque ele contra o muro! (…)/Aquele ali parece judeu!/E o outro é um preto!/Quem deixou essa escória entrar? (…)/Se eu pudesse, explodiria todos eles!”. O governo de Pink se assemelha aos nazi-fascistas ao ter massas uniformizadas, o uso de um grande símbolo (no caso, dois martelos cruzados) e a perseguição a minorias.
Embora não haja lógica em como isso aconteceu e não fiquemos sabendo até que ponto é a imaginação de Pink ou a realidade, isso representa, sem dúvida, a marca que os governos totalitários deixaram. Contudo, não é só isso. Waters diz, em entrevistas, que a idéia para o CD surgiu primeiro do fato de que em suas turnês ele percebeu uma idolatria tal de seus fãs que ele poderia cuspir neles e eles nada fariam6,. Isso deixou-o de certa forma enojado e com a sensação de que poderia qualquer coisa, como acontece com Pink. Podemos entender esse evento na vida de Pink como uma constatação desse entorpecimento das massas, que ficariam completamente ludibriadas por governos, bandas, produtos, enfim, qualquer coisa que conseguisse conquistá-las. Assim, é como se as pessoas ficassem cada vez mais alienadas e à mercê do que a mídia dizia. Se pensarmos o lugar e época do CD, quando a propaganda era mais do que nunca utilizada para convencer as pessoas de como o capitalismo era melhor e criava modismos sobre o que deveriam comprar, vermos as pessoas seguindo um líder desequilibrado como Pink serve como um alerta a esse fato.
Entretanto, sem sabermos direito como, Pink acaba abandonando o governo na música Stop e diz precisar saber se é culpado de alguma coisa. Assim, é levado a julgamento, o que é o fim do CD, com The Trial e Outside The Wall. A mesma sociedade que o apoiara agora condenava-o, dizendo ironicamente que Pink fora “pego em flagrante mostrando sentimentos (…) de uma natureza quase que humana”, e mandando chamar o diretor da escola. A sentença para Pink é que seu muro seja destruído. Assim, ele é ruído e Pink vê-se diante do mundo do qual ele sempre tentara fugir. No filme, vemos diversas crianças pegando os tijolos caídos. Concluímos a partir daí que na realidade o caso de Pink era só mais um, pois esse era um ciclo que ainda iria se repetir com cada criança construindo o próprio muro. Assim, as cicatrizes do século XX, a opressão da sociedade e o individualismo exagerado seriam sempre tijolos na vida de cada um.
Notas
1- O filme, Pink Floyd The Wall, saiu em 1982 e foi dirigido pelo diretor britânico Alan Parker. O roteiro foi escrito por Roger Waters (vocalista e baixista da banda).
2 – Esse trecho da música foi livremente traduzido, assim como todos os outros trechos de música e entrevistas apresentados no trabalho.
3 – Essa análise foi feita informalmente através um site, cujo endereço consta na bibliografia.
4 – Trecho retirado de Era dos Extremos – O breve século XX: 1914 – 1991, de Eric Hobsbawm.
5 – Essa entrevista, concedida durante um programa de rádio, está disponível online e seu endereço consta na bibliografia.
6 – É sabido que Roger Waters, de fato, chegou a cuspir em um fã apenas “porque podia”, como que para comprovar o que lhe parecia como uma idolatria exagerada.
Referências Bibliográficas
HOBSBAWM, Eric J. – Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991, 2ª Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
URICK, Brett – The Wall Analysis. Disponível em: http://www.thewallanalysis.com. Acessado em: 18/05/2009.
Entrevista concedida por Roger Waters em 1979 a Tommy Vance disponível em: http://www.pinkfloydz.com/rwinttommyvance1979.htm. Acessado em: 18/05/2009.